29 Mai 2021
“Será crucial a relação dos setores mais críticos da nova convenção constitucional, provenientes de movimentos sociais, com suas próprias bases, pois, caso contrário, será uma nova constituição que poderá contar com certos Direitos Humanos consagrados e até mesmo da Mãe Terra, como a água, por exemplo, mas sem um enraizamento nas comunidades, o que fará com que sejam facilmente enfraquecidos pelos próprios governos e as grandes empresas existentes, como aconteceu em tantos outros países da região”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 27-05-2021. A tradução é do Cepat.
A pergunta sobre a descolonização do Estado se torna central no contexto atual do Chile, após a inédita eleição paritária de candidatas e candidatos constituintes e do conhecimento de quem fará parte deste novo órgão fundamental.
Destaco isto, pois o Estado do Chile, ao longo de sua história, gerou diferentes constituições, a partir de 1810, escritas de maneira antidemocrática, por pequenos grupos da elite que assentaram as bases de um período republicano, que embora seja apresentado como uma ruptura histórica em relação ao período colonial anterior, aprofundou a exclusão e negou a possibilidade de nos pensarmos para além dos esquemas mentais, materiais e simbólicos provenientes do Norte Global.
Sendo assim, embora a chamada independência do Chile tenha sido realizada com sucesso em termos militares e administrativos, não conseguiu ser realmente um processo descolonizador, já que como bem mostrou o pensamento anticolonial, foi um processo herdeiro de um padrão de poder global moderno, capitalista, patriarcal e eurocêntrico de caráter universal, que manteve a ideia racista de que a Europa e os Estados Unidos eram os faróis a seguir politicamente.
Não é por acaso, portanto, que as novas repúblicas nascidas no século XIX na região, como o caso da chilena por exemplo, sejam o resultado de ideias políticas provenientes de processos internos do ocidente, como são os casos da Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos, como se o único caminho a seguir fosse somente um e não houvessem alternativas fora dos limites das democracias representativas modernas.
É assim que diferentes ideias políticas como progresso, desenvolvimento, direita-esquerda, liberalismo-socialismo, conservadorismo-progressismo, parlamentarismo-presidencialismo, Estado Unitário-Estado Federal e a própria separação de poderes (executivo, legislativo e judiciário) foram a base para sustentar as democracias modernas existentes na região, o que pode ser visto como um mero processo de colonialismo interno ou colonialidade, como disse em seu momento Aníbal Quijano, ao sermos definidos e nos vermos como países inferiores, subdesenvolvidos e provenientes do Terceiro Mundo.
Alguém pode dizer que, no século XX, as diferentes esquerdas na região e processos políticos existentes no Chile, como são os casos da Frente Popular e a Unidade Popular, ampliaram a democracia existente por meio da incorporação de novos atores e direitos sociais, como um questionamento profundo ao Estado capitalista, por reproduzir a desigualdade entre países centro-periferia, como bem esboçaram, em seu momento, as diferentes teorias da dependência.
Não obstante, muitas das diferentes correntes transformadoras do século XX no Chile, assim como na região, não questionaram as próprias bases da colonial-modernidade, ao se situar a partir de correntes políticas estadocêntricas e uninacionais, sem ir além dos limites impostos pela civilização ocidental, como aconteceu com o marxismo e os socialismos reais, que acabaram reproduzindo um modelo industrial, urbano e antropocêntrico, que colocou o mundo em uma crise socioambiental global sem precedentes.
Diante disso, torna-se importantíssimo mencionar as grandes mobilizações populares contra o neoliberalismo, os processos constituintes e a guinada política de vários governos da região, a partir dos anos 2000, em que foram conquistados novos direitos e novas constituições que foram além de lógicas modernas, pelo fato do movimento indígena estar amplamente presente.
É assim que a influência de diferentes organizações indígenas, tanto no Equador como na Bolívia, como são os casos da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), o Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu (CONAMAQ) e a Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB), foram cruciais para romper com lógicas tradicionais provenientes de esquerdas eurocêntricas e autoritárias, que historicamente conceberam a Mãe Terra como uma fonte inesgotável de recursos para o Estado.
Daí o fundamental na conformação de Estados Plurinacionais e Interculturais, onde os Direitos da Natureza, o respeito à Mãe Terra e alternativas como o Bem Viver/Viver Bem são centrais como horizontes sustentáveis para a vida de humanos e não humanos e verdadeiras guinadas civilizatórias em relação ao direito moderno humanista, como escreveu o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, em seu livro “A Pachamama e o ser humano” [publicado em português pela editora UFSC].
Lamentavelmente, na prática, nesses dois países, assim como na região, o extrativismo foi amplamente aprofundado, com esses direitos sendo fragilizados pelos próprios governos progressistas, onde o caudilhismo, o clientelismo, o desenvolvimentismo, a partidocracia e a dependência econômica em relação à China foi fatal contra a implementação de políticas que coloquem o cuidado da vida no centro.
Sendo assim, os governos com maior apoio popular durante o ciclo progressista na região, como foram os de Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, Cristina Fernández, Lula da Silva, José Mujica, para além de certas políticas e retóricas de transformação social em seus respectivos países, inclusive anti-imperialistas, ao final, subordinaram-se ao chamado consenso das commodities, conforme Maristella Svampa problematizou.
É possível dizer que com a recente chegada de David Choquehuanca à vice-presidência do Estado Plurinacional da Bolívia, há um revigoramento na defesa da Pachamama, por meio de iniciativas como o projeto de Lei da Defensoria da Mãe Terra. No entanto, tomando as palavras de Eduardo Gudynas, o país já possui normas ambientais básicas que não são aplicadas e, além disso, o tribunal Agroambiental não funciona sequer minimamente, por exemplo.
Visto este cenário em nível regional, a pergunta pela descolonização constitucional no Chile se vê extremamente complexa e difícil de responder. Isso por considerar que o Chile deve ser o país mais neoliberal do mundo, em nível institucional, e com a sociedade mais bancarizada e endividada que se conhece.
Isso foi acompanhado por um processo de militarização do Estado do Chile em territórios indígenas, não sendo apenas um processo de usurpação de terras por parte de grandes empresas florestais, mineiras e energéticas, mas também uma negação dos sujeitos políticos e de sua contribuição para a construção de uma democracia pluriversal.
Por esta mesma razão, a reconstrução do tecido social, a organização política e a articulação entre movimentos sociais no Chile chegaram muito mais tarde do que outros países da região, em face de uma institucionalização e naturalização tão forte do neoliberalismo no Chile. Sendo assim, o desafio de descolonizar o Estado talvez seja muito mais ambicioso e difícil de se expor, mesmo que para a discussão.
Felizmente, com a revolta popular de outubro de 2019, abriu-se um processo de politização no Chile muito profundo, que gerou um processo constituinte inédito no país, forçando a classe política neoliberal a ceder um plebiscito no qual os cidadãos decidiram se queriam ou não uma nova constituição, que em 2020 resultou em um esmagador 80% das preferências por um Sim em favor de uma nova constituição.
Além disso, também é destacável a eleição paritária para constituintes do último dia 15 e 16 de maio, da qual muitos lutadores sociais e ambientais da revolta social e parte de organizações da base saíram eleitos e eleitas. Não é pequeno, por exemplo, o papel que as e os constituintes da Lista do Povo desempenharão nesta nova convenção constitucional, juntos com outras e outros independentes críticos que têm uma relação direta ou fazem parte de comunidades organizadas.
Não obstante, dirimir a incerteza sobre como esta convenção constitucional funcionará, no que diz respeito à sua capacidade de se articular com os diferentes movimentos sociais e territórios, será fundamental para a sua capacidade de gerar mecanismos de participação direta com as comunidades. Mas também é fundamental a própria pressão social a ser exercida sobre esta nova convenção constitucional, por meio de manifestações, greves, paralisações, conselhos autoconvocados e trabalho político nas bases.
Obviamente, o perigo de que os partidos políticos tradicionais recolonizem o processo institucional constituinte está sempre presente. Não se deve esquecer que são esses mesmos partidos, não só a direita, mas também os de uma esquerda de mercado (ex-concertación), que negaram a possibilidade de pensar um país diferente.
Mas também não se pode ver com muito otimismo o que pode acontecer com os partidos políticos de esquerda mais progressistas no Chile neste processo constituinte, como o são os casos do partido comunista ou dos partidos que formam a Frente Ampla. Parece-me que todos eles ainda não veem o eurocentrismo como um problema político a ser superado e a descolonização do Estado como parte de um processo crucial para construir no país.
Penso assim, pois em maior ou menor medida continuam sendo esquerdas apegadas a modelos políticos eurocêntricos, sejam eles social-democratas, populistas ou marxistas, onde a discussão do maior ou menor tamanho do Estado, enquanto superação do neoliberalismo, é vista como a principal aspiração a ser alcançada neste novo processo constituinte.
Saliento isso, pois quando essas esquerdas ocidentais no Chile debatem a descolonização, a plurinacionalidade e a interculturalidade, seguem pensando tais dimensões como meros reconhecimentos aos povos originários e no melhor dos casos como certas autonomias territoriais, mas não como algo transversal na sociedade e de transformação do próprio Estado moderno.
Não vendo, desse modo, conforme aponta Silvia Rivera Cusicanqui, que a questão é desabrocharmos o índio ou a índia que temos dentro de nós e ir muito além da própria ideia de plurinacionalidade existente no Estado moderno, a partir de uma visão ecoterritorial, como bem destaca Francisca Fernández Droguett, na qual se inclua comunidades políticas indígenas, afro, migrantes, camponesas e setores populares urbanos.
Não surpreende, portanto, que nessas esquerdas persista um discurso completamente subordinado ao discurso colonial de desenvolvimento dos últimos 70 anos, onde receitas como o desenvolvimento sustentável ou um ecossocialismo estatal parecem se instalar como saídas à crise climática atual.
Além disso, esses mesmos setores de esquerda também continuam utilizando discursos estadocêntricos, do século passado, para se referir aos bens comuns comunitários, onde a nacionalização estatal dos chamados recursos naturais e a industrialização da economia são propostas como um horizonte desejável, apesar de ser socioambientalmente insustentáveis.
Menos mal que os movimentos sociais no Chile, nos últimos 20 anos, formado por diferentes organizações estudantis, socioambientais, feministas, mapuche, entre muitas outras, foram cruciais para confrontar, reconfigurar e ampliar esta retórica de esquerda eurocêntrica e antropocêntrica, ancorada nos limites coloniais e patriarcais da modernidade.
Os casos no Chile da Associação de Estudantes Secundaristas (ACES), o Movimento pela Água e os Territórios (MAT), a Coordenação Feminista 8 de Março, a Coordenação Nacional de Imigrantes e a Coordenação Arauco-Malleco (CAM), só para citar alguns, são bons exemplos de como a partir das comunidades e territórios organizados é possível construir alternativas mais profundas.
Desse modo, no Chile, com cada vez mais força, são levantadas demandas como os Direitos da Mãe Terra, o direito a migrar, o fim da megamineração, o fim do adultocentrismo, a educação não sexista, as políticas dos cuidados, o direito à loucura e à diversidade mental, a soberania alimentar e energética, a gestão comunitária das águas, as famílias plurais e alternativas ao desenvolvimento e à modernidade, a partir de bons viveres, como o Küme Mongen mapuche e outras visões e experiências coletivas e ecocêntricas que transcendem o Estado moderno.
Portanto, será crucial a relação dos setores mais críticos da nova convenção constitucional, provenientes de movimentos sociais, com suas próprias bases, pois, caso contrário, será uma nova constituição que poderá contar com certos Direitos Humanos consagrados e até mesmo da Mãe Terra, como a água, por exemplo, mas sem um enraizamento nas comunidades, o que fará com que sejam facilmente enfraquecidos pelos próprios governos e as grandes empresas existentes, como aconteceu em tantos outros países da região.
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Chile. Rumo a uma descolonização constitucional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU